13 de set. de 2021

A menina do outro lado da rua. Coluna Nossas Palavras.



Texto do Prof. Hedilberto Apolinário



Eu em minha rotina quase nunca percebia que do outro lado da rua uma criança sofria. Agarrada à barra da saia da mãe, por vezes chorava, por vezes tinha o sol ferindo a frágil pele de bebê. Aparentava no máximo três longos anos, vividos ao sol à beira de pista, onde ninguém quase nunca a percebia.

No alto do meio dia, vez por outra ela estava mais próxima, pois alguma guloseima a mãe vendia. Contudo a voz da mãe sempre em tom agressivo, algo reclamava a pobre menina.

Pobre, esse é o contexto que explica todos os fatos humanos inexplicáveis. Seria então a vantagem de ser pobre obter mais sol na cutes, sintetizando assim mais vitamina D? Seria vantagem evolutiva, agarrar na saia da mãe em frente a uma instituição e não brincar o dia todo? Seria vantagem comer mal e fazer as necessidades fisiológicas em frente a alguns desconhecidos, como se isso evitasse a timidez? 

É duro pensar que são sabidas todas as respostas para essas questões, e mais duro ainda é encontrar na pobreza o jugo e a explicação para tudo isso que vive aquela criança. Das misérias humanas a mais terrível é a pobreza. Não que todos fossem ricos. Mas que pelo menos fosse feito algo que oportuniza àquela criança a escolha de não estar ali, no sol e longe da escola. Porém perto da mãe, que para afastar o tédio, joga alguns jogos populares que são pacientemente assistidos pela criança, que aprende os jogos e o vocabulário pobre usado enquanto se joga.

Quando a gente tenta achar uma informação sobre o que é pobre, encontra se o seguinte dizer: desprovido ou mal provido do necessário. Então avançamos na pesquisa e procuramos saber o que é necessário, e nos é dito: absolutamente preciso, indispensável, o que não se pode evitar.

Os humanos em algum momento erraram ao criar a pobreza. Pois não acredito nessa humanidade que deixa alguém ser desprovido do que é necessário. Em especial a menininha do outro lado da rua.

Então seria humano ser rico, ou seja, ter mais do que é necessário? Então seriam mãe e filha algozes da própria vida, tendo escolhido a pobreza para viver ao invés da riqueza? Alguém oportunizou que aquela mãe estudasse numa escola que tivesse planejamento didático pedagógico, infraestrutura física adequada para cada idade do desenvolvimento humano, alimentação, água, recreação, professores e equipe pedagógica? Se a resposta for um sim, creio que a escolha da mãe deve ser respeitada. Contudo, todavia, se a resposta for não. A lógica nos leva a concluir que a mãe está na pobreza porque foi empurrada uma vida toda para ela. E pior, essa dita mãe está repetindo sua sina na criança que carrega na barra de sua saia, e eu impotentemente assisto do outro lado da rua.

Faz alguns anos que parei de brigar por gente velha, adulta e entendedora do mundo. Brigo por oportunidades para todas as crianças/adolescentes. Uma escola boa, que liberta, que está inserida no mundo para criar oportunidades. E essas oportunidades podem transformar a vida e deixar que o sujeito que aprende escolha entre ser pobre ou rico. Sei que são dois extremos difíceis de indicá-los como únicos vetores da vida, mas que ao menos o sujeito consiga se situar no meio dos dois extremos. Essa crença me faz todos os dias agir como Professor. Não como aquele que professa, mas como aquele que apresenta, dá possibilidades de mudanças, aponta caminhos e ajuda o indivíduo a escolher suas trilhas nessa vida. Sei que não toco a todos e não interfiro na vida de todos, mas para alcançar a vida de muita gente, temos na escola muitos professores. E nós professores saímos tocando as vidas das pessoas com oportunidades de aprender. E assim a escola coloca o aluno diante dos dois vetores extremos, pobre e rico, e a pessoa que aprende escolhe o caminho o qual trilha de modo individual e particular, por isso é claro que alguém pode escolher ser pobre. E não há problema nisso, a meu ver o problema é não haver rotas de escolha. Lembra da menininha, o problema é ela não ter escolha, ser empurrada para apenas um vetor. E em especial, aquele onde ninguém quer ir. Mas, a grande maioria aceita de livre agrado que o filho do outro seja jogado para ele. Aceita o arremesso e a construção de uma pessoa sem oportunidades, e que seja pobre e ponto. Então lembro-me da humanidade que significa: sentimento de bondade, benevolência, em relação aos semelhantes, ou de compaixão, piedade, em relação aos desfavorecidos. E não encontro nada disso para com a menininha, que passa despercebida pelos olhos de tantos, tendo seu destino marcado pela falta de oportunidade, repetindo o jugo da pobreza que foi imposto primeiro a sua mãe, e como um círculo de fogo gira queimando a descendência daquela família.

A grande questão: Como ajudar essa menininha? Creio que a resposta passa longe de dar dinheiro a família. Penso que a grande coisa que podemos fazer é enxergar a menininha e sua família, pondo sobre a situação desses tantos invisíveis a luz necessária para que sejam colocados no orçamento público. Essas pessoas precisam de uma boa escola, igual a todas as outras pessoas desse Brasil. E repito com ênfase: Uma boa Escola! Capaz de ser humana para com a menininha, e criar as possibilidades para que a menininha cresça e seja a dona de sua vida escolhendo se quer ser pobre, rica ou se quer se posicionar entre os dois extremos de um modo que seja agradável para suas vidas, e deste modo, aquela menininha contribuirá para a construção de uma sociedade mais igualitária e honesta. Pois é visto que na atual conjuntura esperar contribuição social da menininha e sua família é algo muito difícil.

Nessa conjuntura, eu só posso pôr luz sobre os invisíveis, colocá-los no orçamento público e assim deixar de ver a menininha do outro lado da rua, e deixar de ver tantos outros que estão vagando perdidos por tantos caminhos por onde passamos do outro lado de tantas ruas, exibindo o que somos e o que temos.


5 comentários:

  1. Excelente texto para uma boa reflexão a respeito das injustiças sociais na nossa desumana sociedade brasileira. Parabéns Hedilberto !

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  2. Nossa, é um texto muito tocante! Senti todo o dilema do narrador enquanto lia e é triste saber que a realidade apresentada no texto ronda o dia a dia da população, no entanto poucos estendem a mão e tentam fazer algo para ajudar através da educação. Na verdade, a maioria vê como algo "normal" e decide seguir indiferente.

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Seu texto faz toda a diferença nesse blog e pode ser a diferença também na vida e nas escolhas de outro aluno.
Boa Leitura!